domingo, 15 de março de 2009

Dandi ou flâneur, qual o papel da rua na formação da psique de Doryan Gray?

O dandismo de Doryan em nada difere dos mesmos praticados por contemporâneos seus e meus. A formação de um jovem playboy inglês é tão comum ao século XIX como são os atuais. Mas há entre os dois, em comum, uma importante e diferente atuação e participação da rua neste processo de formação da psique destes dandis. A rua, a grande musa destes dandis, tem um papel fundamental nesta formação por exercer um fascínio incólume sobre seus amantes.O seu amor pela rua pode ser velado ou exteriorizado, de forma plena, como é feito por João do Rio em seu A alma encantadora das ruas: “Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado fosse partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os prazeres, a lei e a policia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua”.(pág: 45)[2]A rua tem alma, rosto e cor. É tão palpável e tão mais cheia de vida que qualquer outro aspecto ou estrutura de formação de um dandi, ou flaneur para os franceses.No livro de Oscar Wilde essa mesma rua tem uma função própria e ao mesmo tempo incomum na vida de Doryan Gray, seu personagem principal e quase que um retrato autobiográfico. A rua ambientou sua vida, ou seja, ele esteve sempre lá, mas nunca fazendo parte dela. Ele não tinha a mesma natureza comportamental e filosófica da mulher cantada por um cançonetista de Monmartre, famoso reduto dos maiores flaneurs de Paris: ”Je suis la rue, femme eternellement verte, je n’ai jamais trouvé d’autre carrière ouverte sinon d’ètre la rue, et, de tout temps, depuis que c’est pénible monde est monde, je la suis...”[3] Ao contrário da mulher citada na canção; a rua para Doryan tinha a simples aparência de uma moldura, uma cenografia para o exercício íntimo de tudo que lhe parecia falseado pelos preceitos e preconceitos da época, o que em uma sociedade de maioria católica ou praticante de uma outra religião, como este era o caso de Doryan, tornava-se pecado. No texto de Wilde, encontra-se um certo Doryan que vê na rua algo de tão estranho que não se encaixava na sua prática filosófica de vida. Em certos momentos como no trecho: “Doryan Gray via distraidamente desfilar a torpeza sórdida da grande cidade”.(pág. 150)[4], nem conseguimos definir qual a relação de Doryan com a rua. Ele enxerga a rua como algo que não se enquadra no seu estilo de vida, algo repugnante, sórdido, vil e abjeto, mas ao mesmo tempo em que não aceita sua relação com ela, continua freqüentado-a e dela usufruindo. É biograficamente visível que Wilde se valeu de sua experiência íntima com a rua para dela extrair seu superego e materializá-lo em Doryan, pois se não o fosse como conseguiríamos definir qual das duas experiências tinha um teor mais crítico a respeito da rua? Doryan, por razões sócio-econômicas, convivia com a rua e seus particípes. Seus hábitos e costumes é que, em muito, lhe desagradavam por não se enquadrarem em regras de conduta que ele outorgava, mas ao mesmo tempo repudiava. A rua que tanto se traduzia em mazelas para Doryan, trazia-lhe a realização dos seus desejos mais ínfimos, pois como tudo que lhe trazia desagrado tinha em si algo de encanto. O que encantava Doryan na rua era a liberdade experimentada por seus convivas, liberdade essa que Doryan não encontrava em seu meio social. Assim Doryan desfrutava da rua, junto com alguns de seus comensais que embutiam em si desejos iguais, como cenário dos seus desejos mais ínfimos e torpes. Claro que a adjetivação desses desejos ficavam por conta dos conceitos relacionados anteriormente. A rua destina-se a tudo, a rua encaixa-se, conforma-se. Essa receptora de todos, transformadoras de alguns, destruidora de muitos e viúva de milhares, é o que nos interessa no texto de Wilde. Nesse processo de construção da psique de Doryan, Wilde busca na rua uma explicação, paralelamente à busca de uma aprovação, para as atitudes de Doryan. Por fim Wilde acaba por utilizar o quadro para justificar os distúrbios da psique de Doryan. Em um estudo realizado na década de 60, nos Estados Unidos, o psicoterapeuta Erik H. Erikson[5] discorre a respeito da formação de um adulto durante toda a adolescência. Para a formação dessa psique, Erik nos alerta quanto à importância da rua nesse processo de formação para a absorção e uma conseqüente dissipação de uma serie de informações e regras. Como o ser humano é provido de um ego (conjunto de características que formam o eu sujeito) e um superego (conjunto de características da formação do eu-íntimo ou eu-interior), é na rua que podemos tanto buscar a formação do ego como a fruição do superego. No texto e nas falas de Doryan, encontramos o comportamento de senso comum, onde há, por ele, a utilização da rua, tanto em espaço físico como espaço imaginário, como veículo fruídor do superego. Na rua era onde ele transmudava todos os seus pensamentos em ações intencionais ou não. O personagem inventado por Wilde, pois Doryan nada mais é que uma invenção do desejo de seu criador; necessitava deste veículo como a justificativa de uma subvida nascida de seu envolvimento com as artes, o que depois viera a despertar sua consciência com relação a essa utilização marginal da rua. Doryan não se encontra inocente, pois a rua a nada nos obriga; ela nos instiga, estimula e favorece, nós é que distorcemos suas dádivas. A relação de Doryan com a rua é quase leviana o tempo todo, Wilde não se interessa em relacionar seu personagem com a mesma. Essa relação leviana é o que desperta meu interesse, pois é com as informações fornecidas pelo autor em conjunto com o estudo profundo do trabalho de João do Rio (Paulo Barreto) da década de 20 sobre as ruas do Rio de Janeiro, que conseguimos entender em parte as distorções de caráter e traços de uma psique atordoada como a de Doryan. Pois há em O Retrato... uma relação alinhavada com a rua, há uma permanência da rua como uma constante no trabalho de dandismo desenvolvido por Doryan, essa relação parece ser velada com o único objetivo de tornar-la condizente com a situação socioeconômica da personagem em questão. Essa relação de estudo entre os dois trabalhos é o que me favorece quanto ao que devo esclarecer: a rua tem toda a sua magia, todos os seus encantos, todos os seus talentos e paixões, toda a sua cor e cheiro, só não há uma placa de aviso em sua porta de entrada, advertindo quanto a existência de seres inadequados em seu interior.




[1] Aluno do curso de publicidade e propaganda da Faculdade Integrada do Ceará, F.I.C..
[2] Do Rio, João; org. Raul Antelo. A Alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das letras, 1997.
[3] “ Sou a rua, mulher eternamente viva/e nunca tive outra alternativa/a não ser a rua e desde todo o sempre, desde/que este penoso mundo é mundo, sou...”
[4] Wilde, Oscar. O retrato de Doryan Gray. São Paulo-SP, Martin Claret,2007.
[5] Erikson, Erik; Adolescence et crise- La quête de l’identité.Paris: Flamarion,1972.

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