domingo, 15 de março de 2009

Memorial de uma meia-vida-inteira.

Nasci para ser e não para ter. Nasci como uma promessa e vivo como deve viver uma promessa: sempre pronto a causar uma surpresa ou mesmo desgosto. Prefiro causar surpresa, mas me agracio quando me reduzo a desgostos, pois assim me afirmo como ser único e individual, mas nunca individualista. Não como o ser que eles querem ou buscam em mim, pois a única batalha que devo travar durante essa meia-vida-inteira é mostrar-lhes que não sou um erro ou uma promessa falha; pois se assim o fosse eles deveriam se envergonhar com sua própria imagem, pois sou o que sou, seu produto cuspido ao mundo e por ele completado, usado e consumido, mas muito mais aproveitador que aproveitado, pois o que carrego desta meia-vida-inteira é o que usurpei, consumi e mastiguei do que me foi oferecido durante esta que deveria ser longa como uma promessa, mas foi apenas o que se esperava de uma meia-vida-inteira. Não que ela se reduza ao fim, ao meu desaparecimento de suas vidas, pois sei que sou uma coisa eterna, ou pelo menos me tornarei coisa quando for para o desconhecido. Serei uma coisa lembrança, ou coisa lembrada. Questiono-me o tempo todo sobre quando me tornei coisa para mim, pois para eles só o serei quando me tornar apenas uma lembrança, aí serei a coisa lembrada, para alguns a coisa marcada na pele, mas não menos coisa; o que eles não sabem é que fui coisa durante toda a vida, a coisa quista, a coisa consumida, a coisa usada e que deu-se ao uso, deu-se quando quis e quando não quis foi tomada. Talvez não tenha sido eu a mesma coisa que foi Carlos Drumond de Andrade, mas fui e agora sou a coisa quase tão eterna quanto é o mesmo Drumond. Essa coisa que agora sou; é apenas o fugidio lapso do que sei que realmente sou, é o algo e talvez o mesmo IT, assim mesmo em maiúsculo, que Clarice tanto privilegiou como algo sem formato e sem matéria e que agora percebo que esse mesmo IT sou eu. Enquanto coisa consumida sou tão dono de mim quanto dos outros, pois me doei tanto a eles como os consumi, talvez só eu sabendo que eram coisas enquanto achavam que não eram e que consumiam algo que imaginavam ser matéria, mas que era só coisa o tempo todo. E aí sei que mora a melhor parte da história da coisa que sou. Foi quando me percebi coisa (ou será que me forçaram a perceber-me assim?) que pude disfarçar minha vergonha em enxergar-me como tal e usar do total desconhecimento alheio como coisa para utilizá-los e oferecer-me a eles como ser e não como coisa. Nos caminhos mais disformes que a vida me ofereceu, foi onde pude enxergar que mesmo eu como coisa posso ter forma, gosto e cheiro, e compreender-me assim como uma coisa, mas uma coisa de natureza toda íntima. E era essa mesma natureza que lhes oferecia, mas que nunca foi percebida, porque a única realidade que queriam era a minha realidade como coisa e não a natureza íntima, personificada na coisa que sou e que agora depois de morto, tornou-se coisa eterna. Essa coisa eterna que agora ri dos que o tiveram e se entristece pelos que não o tiveram, como a mãe que pranteia seu filho tão rebelde, mas não menos querido. Ouçam-me bem queridos, para depois não me acusarem de leviano. Lhes falei essa verdade o tempo todo, se não me ouviram, são os únicos culpados. Se não me quiseram perceber, arrependam-se agora que o tempo lhes tem por inimigos, pois fui tudo que queriam como coisa e vou-me agora como coisa que tomou vida, e as ilusões que tinham a meu respeito, tornaram-se uma promessa sem data, uma esperança que agora é tão eterna quanto as promessas não cumpridas. A busca que deveria ser unicamente minha, eu a dividi com os que resolveram me usar. Dei-lhes a oportunidade de um sentido em uma fração de segundo, deixei que tivessem em mim o que nunca lhes foi possível em sua vida medíocre e covarde. Aí consegui entender como me tornei coisa, pois foi assim que me percebi consumido como um produto, assim me enxerguei como arrastado de uma gôndola para uma ação de consumo. Minhas qualidades tornaram-se fundamentais a partir do momento em que me dei a perceber como diferença, como atributo do que lhes faltava, como a vergonha do que eram, ou do que pretendiam ser. Assim passei de um estado de busca contínua para um estado de percepção contínua, encontrei-me enquanto coisa quando queria encontrar-me enquanto pessoa. Não me enojo de tudo, ou mesmo paro para me castigar pelo que me ofereci enquanto produto, pois como esse relato sem parágrafos, minha vida foi tão contínua que não me dava ao luxo de me arrepender da estultícia alheia, não só alheia a mim, mas aos seus condutores. Não há nada de ruim em se aproveitar de quem só te quer enquanto coisa! Há? Se algum dentre vós discorda de mim, transforme-se agora, deixe que vos usem sem deles nada aproveitar, e quando encontrarmo-nos relatem-me o que aprenderam de vós mesmos. Certamente nada, pois nada se aprende, que não seja por usurpação; as relações de troca inexistem nesse processo de aprendizado. Enquanto coisas, eles nos querem tudo; mas oferecendo-lhes o que pensam ser nossa completude, baixamo-lhes a guarda para que deles possamos tudo usufruir e roubar. Isso se aplica a tudo, em todas as relações, em todas as buscas e, principalmente, em todos os desejos. Não que os desejos não se permitam às relações pessoais, mas há ainda a verificação da coisificação do sujeito, há, em alguns casos, a busca do saciamento do desejo e não a busca por permanência do mesmo. Deixe-me explicar-lhes: enquanto coisas somos objeto de saciamento de um desejo, somos produto desse desejo nas relações baseadas só no desejo, mas nas relações pessoais podemos tornarmo-nos produtores desse mesmo desejo, aí se encontra o fundamento de não nos oferecermos como coisa e sim como seres. Durante minha passagem por esse burlado sistema de seres coisificados, compreendi que, enquanto coisas, podemos mais que enquanto seres. Isso não faz do mundo um desperdício total, faz dele uma insignificância projetada pelo nosso posicionamento nessas relações de troca, sejam permissivas ou não. Em minhas relações de uso e abuso, pois não me identifico como ser partícipe de relações de troca, não me doei, ao mesmo tempo em que os consumia, apenas os consumi até quando não me ofereciam por completo. O mundo que construí enquanto coisa foi-me favorável, deu-me tudo que dele eu queria, e o que não me dei, eu tomei. Tomei, não por empréstimo, mas por usurpação, pois não me foi oferecido. As falências do que se tem são assim como as coisas que não se conseguem ainda em vida, tornam-se eternas lembranças de coisas passadas. Não me sinto mal por ter usurpado tanto e me oferecido tão pouco, não me condeno por pensar que o que lhes ofertei tem uma valoração maior que o que lhes usurpei. Isso não é um “mea culpa” muito menos um pedido de perdão, isto é um relato do que vislumbro do meu passado, feio para uns, brilhante para os menores. É a colocação sem nexo, sem coesão do que tem sido a personificação, os usos e abusos dos seres enquanto coisas. Que isso possibilite um choque de realidade em seres que não se reconhecem enquanto coisas, ou que preferem não se afirmar assim. Que essa constatação possa fortalecer a necessidade totalmente humana de consumo de si, e consumo do alheio, que esse discurso possibilite uma liberdade para esses seres que tem como abrigo sua vergonha, essa vergonha que é o seu próprio conceito de moralidade. Uma moralidade que lhes serve como arma de defesa, como mola de uma urdidura que lhes convém manter sob pena do fim do protecionismo social. Não me percebo como tal, não me quero, mesmo quando coisa, ser alinhado a esses seres que me enojam, que me fazem ruborizar, até mesmo quando coisa. Tenho medo de perceber que vivi tanto tempo entre eles e consegui não findar esta atitude compartilhada por seres tão desequilibrados, tão questionáveis como coisas e inaceitáveis como seres. Não há um ponto ou mesmo uma virgula de arrependimento nesse relato, não há um posicionamento afirmativo de que o que falo é a profecia do que somos, até por saber que esses seres jamais se permitiriam reconhecer-se em minhas palavras, não me atrevo a condicionar-lhes ao que falo, mas falo mesmo assim, para que no momento oportuno, estas linhas cheguem ao conhecimento dos interessados, elas mostrem o que sabem, mas que talvez não queiram reconhecer. Passei por aqui meus queridos, fui tudo o que sois, vivi como vivem, mas de tudo me aproveitei, e de todos mais ainda. Ouvi a palavra que esses seres pensam traduzir toda a positividade do ser humano, sujeito ou coisificado; essa palavra veio a mim com muita pureza, dos lábios sábios de minha querida progenitora, mas quando veio coisificada ele nem mesmo sabia que falava enquanto sujeito e isso me obrigou a rejeitá-lo, pois não me permito ser amado por alguém que trata com leviandade seus próprios sentimentos. Não fui melhor ou pior, não fui menos partícipe desse jogo que os outros jogadores só me recusei a mostrar-me como inconsciente. Por isso agora me coloco como algoz dos que de mim pensavam usuários. Poderia aqui citar nomes vários, mas não é minha intenção emparedá-los, mas apenas informá-los que enquanto pensavam-se usuários, eram só objetos do que de mim era em mim tão notável. Tenho muito de gratidão para com os colaboradores dessa minha interferência nesse espaço, que se dignou a me oferecer uma experiência tão marcante que precisou ser mantida em registro para que, como sempre fazem, possam ter mais um para chacotearem como louco. Isso será permitido! Permito-me a isso, para que assim possa manter-me mais uma vez como coisa e permitir que mais uma vez não me enxerguem como sujeito, como natureza toda intima. Escuta agora teu coração, se ele bate, deixe que o vejam, como eu deixei que vissem o meu por toda a minha meia-vida-inteira. No tocante a esta, que foi a melhor experiência que se pode ter enquanto humano, tenho uma merecedora gratidão aos que comigo conviveram, pois sei que desses, eu obtive o melhor e a eles dei-lhes o melhor de mim. Não se assustem meus queridos, a vida não é tão terrível quanto eu vos configuro, mas quero que aprendam a dizer a verdade, não digam que amam quando só querem sexo, não chamem de belo o que só seduz o seu sexo, compreendam-se, revelem-se, eu vos conheço capazes disso porque vos amo, amor esse que me ensinaram a reconhecer, e que agora espero que me retribuam, vivendo como quero que vivam, não me tendo como comandante de suas vidas, mas como lembrança eterna que a felicidade pode ser vivida sem mentiras. Reconhecer-se enquanto coisas é a melhor maneira de começar a perceber que a verdade é ótima para comandar as vidas de todos nós, por mais vergonhosa que ela seja. Deixem para os tolos o pensamento egoísta que só é usado, quando o uso é mútuo. Assim eles continuarão a ser o que são, enquanto vossa evolução será gradativa e completamente prazerosa. Aconselhando-vos estou apenas cumprindo meu papel nesta meia-vida-inteira, estou apenas oferecendo-vos uma oportunidade de sobrepujar os idiotas que não conhecem os segredos dessa vida sem segredos. Quem nunca ouviu outros falarem não quando querem, simplesmente, dizer sim. Isso parece ser uma das regras de praxe desse nosso “status quo” de aparências, em que se tornou o modo de viver ou de sobreviver nessa selva. Desde que comecei esse relato temo a cada letra sobre o que posso estar transmitindo, mas como meu intento é relatar o que verifiquei durante minha passagem, devo correr o risco de parecer niilista, Albert Camus que me ajude. Meus queridos, a morte que se oferece a mim, como uma noiva sem pudores, é apenas o auxilio para quem deseja contribuir com o caminhar de uma sociedade, que parece ser de uma leviandade incrível. Essa mulher que me rodeia, parece me culpar por algo que não sei o que, parece odiar minha liberdade, parece querer-me pra ela já que não sou de ninguém. Mal sabe, pobre mulher, que continuarei a não ser, e a não pertencer a nenhum de vós, nem como coisa ou mesmo como natureza toda íntima. É a primeira vez que, nos meus últimos dias, tenho uma dor em escrever, tenho um medo que tudo que digo possa ser minha mais completa perda de sanidade, mesmo assim quero não saber, quero apenas senti-la, como fiz durante toda essa meia-vida-inteira. Quero o devaneio, quero dar-lhes um motivo para pensarem-se sãos, quero ser o referencial da sanidade, quero tudo que lhes aflige, quero o medo que é deles e que me faz superior. Quero ser a vergonhosa verdade que traz ao mundo a sujeira de sua própria falsa imagem. Quero manter minha natureza toda íntima entregue nas minhas relações pessoais, mesmo quando eles não a reconheçam. Quero permanecer em suas memórias mesmo enquanto eles negam a minha permanência. Quero ser tudo e ao mesmo tempo o nada. A minha visão de mim mesmo como coisa coisificada é a mesma visão que tenho deles, essa mesma visão que a eles traz alegria, mas que a mim me enoja. Permanecer assim durante toda a vida é, talvez, subtrair a verdade para eles e torná-los mais confortáveis em sua ignorância, mas é, também, a possibilidade de tornar-me um tirano enquanto os mantenho em ignorância quanto a nossa natureza coisificada. Pode parecer que eu me coloque como um ser superior, mas quero que saibam que não o sou, sou tão fraco e vulnerável quanto todos vós, a questão é que levo mais tempo da minha meia-vida-inteira me questionando quanto aos acontecimentos desta. Sou algo entre a coisa e o observador da coisa, e na maioria das vezes sou algo que interfere na coisa. Sou um ser que também tem noites de insônia que são gastas com estas mal traçadas linhas; que pra alguns não tem utilidade alguma, mas que, espero, possam modificar a vida de alguém de uma maneira positiva. Pode parecer pretensioso querer modificar a vida de um ser, mas vidas são modificadas o tempo todo, seja pela força do amor ou pela reconstituição das dores. Talvez seja chegada a hora de findar este grito mudo de alerta; mas aguardo das longínquas moradas onde agora me encontro, que isso tenha uma validade atemporal para os que sofrerão com mais intensidade as pressões de uma vida coisificada. Sinto pelos que tem em suas mãos esta longa jaculatória e não sabem o que fazer dela, e sinto mais ainda pelos não a tem. Não enxerguem minha prece como uma pretensiosa bula para suas vidas mais como uma visão oposta ao que tendes como guia. A melhor maneira de findar esta prece seria informa-vos que isso veio a mim como um assombro, que isso me fere tanto como pode ferir os mais puros, mas não acredito no arrependimento, não creio em lamurias, não as conheço. Tudo que vedes nestas palavras é um imenso desejo, um desejo que tenham armas para contrabalançar esta meia-vida-inteira que parece nascer programada. Espero que consigam perceber-vos como consegui perceber-me a mim. Mas perceber-me assim, foi tão doloroso como o foi anunciar-vos esta descoberta. Esta é sem duvida minha melhor obra, meu melhor empenho, meu mais proveitoso tempo gasto, minha percepção que esta meia-vida-inteira foi a mim muito proveitosa. Esta confissão em obra aberta não me torna frágil nem mesmo covarde, pois ela esteve em minhas palavras sempre que pude expressar minhas angustias; mas palavras são como o vento, vão tão rápido como chegam e quando retornam não tem mais o mesmo sentido que tinham antes. A anacrônia pode parecer a minha mais latente qualidade percebida, mas é sempre meu sinal mal interpretado por quem possui o atrevimento de fazê-lo, pois vivi em meu tempo tanto quanto qualquer outro ser, sendo que sempre me recusei a coisificação, o que parece fazer-me assim uma interposição no tempo e espaço, que se recusa ao reconhecimento de seres que não se permitem como coisas. Nessa alocação tempo-espacial, na qual vivi, vi guerras e alianças de paz que logo se tornariam os estopins de uma nova guerra, e nesse processo contínuo vi a guerra da coisificação dos sujeitos, uma guerra tão violenta e mais destruidora que qualquer guerra armada, pois nestas aprendemos a sentir saudade já que não teremos um corpo físico que de alguma forma nos trazia tantas alegrias; enquanto neste mundo de seres coisificados somos obrigados a conviver com uma mudança desagradável dos que antes amávamos e vimos tornarem-se nessa draga consumidora de efemeridades, e fica difícil perceber que o mundo não é uma merda, apenas cheira muito mal. Talvez tenham uma opinião diferente da minha, mas sei que um dia perceberão o que percebi; e rogo a qualquer força que não conheço que sua dor não marque sua carne como a minha o fez. Não sou um anjo salvador que veio salvar-lhes de um castigo iminente, espero que assim não tenha me apresentado até este momento, pois se o fiz não foi de maneira intencional. O que quero que percebam é que este comportamento que adotam, mesmo que inconscientemente, está longe de ser um comportamento benéfico, se é que ele existe. Se pararem um pouco poderão perceber que suas vidas não se alteram, a alteração ocorre em um espaço físico e no final suas vidas se mantêm num extremo vazio. Esse vazio, por mais que não acreditem, eu nunca o percebi; nunca o percebi pois a minha completude estava sempre em mim e não em outras pessoas ou coisas. O que quero dizer com isso é que a culpa de sua solidão é somente sua, não adianta tentar resolvê-la com supérfluos que podem ser vendidos como paliativos, mas nem mesmo pra isso servem meus queridos. O mundo nos percebe como coisas e em coisas nos transformamos, pois tornarmo-nos perceptíveis é o que todos queremos. O que não acreditamos, ou o que pensamos ser impossível, é que possamos ser percebidos como não-coisas ou como seres não-coisificados. Como vos falei anteriormente, penso que este relato só chegue ao público, ou a coisa pública, quando nesta estação coisificada eu não mais estiver ou pertencer; então devo relatar-lhes que durante um certo período também pertenci, ou assim fui forçado a pertencer, a este mundo de seres coisificados, e vi meu semblante tornar-se mais límpido, meus ouvidos ouvirem com mais clareza, pude amar com mais intensidade, pude oferecer minha natureza toda íntima, quando comecei a perceber minha natureza toda íntima e descartar-me de uma natureza coisificada que só aos outros agradava, que só a eles se doava e a mim tanta dor causava. Agora consigo amar até os seres coisificados e eles me amam mais por sentirem que os amo de forma diferente que o sentimento que a eles é doado. Sou uma natureza toda íntima que se oferece, mas não como oferta coisificada, pois me ofereço completamente de graça. Agora sou todo amor, mesmo quando uso palavras feitas pra cortar e ações feitas pra machucar. Essas palavras e ações têm seu poder de dor, tem seu ardor e sua ânsia de ódio, mas podem ser utilizadas para um fim benéfico. Sei que deve parecer estranho que agora tenha em minhas palavras um tom de proselitismo, mas é isso mesmo que acontece, essa é minha intenção proposital; proselitismo é tudo que posso fazer com o que a mim foi dado gratuitamente: a percepção da minha natureza toda íntima. Assim desejo a sua percepção, a visão de si mesmo, o abandono de sua natureza coisificada, para que percebam o quanto é melhor nos darmos de forma inteira sem desejar que o outro ofereça também uma natureza toda íntima, pois só, e somente ele, perderá com essa relação de troca desigual que se estabelecerá de agora em diante. Estes seres que acreditam num discurso normativo, que o seguem de uma forma religiosa, o fazem quase que de forma imperceptível, e têm uma alegria torpe, tão fulgáz quanto seus momentos de alegria coisificada. O meio que se utiliza desse discurso normativo pode parecer medonho, mas os seres que a ele se submetem são mais ainda medonhos, pois podem buscar meios de vencê-lo, mas não o fazem por pura comodidade, vão preferir sempre que alguém decida o que comem, o que vestem e o que devem sentir e como sentir. Assim a humanidade vai parecer não ter solução, assim terei que sentir ainda dor em cada letra que coloco neste papel que tem me dado tanta dor. Essa dor tem um gosto de azedo que me fere o estômago e entristece minha alma. Sei que a vida não é tão tormentosa assim, mas a mim não agrada enxergar a vida falsamente, ou percebê-la com olhos cheios de alegria, quando ela me dá tantos motivos para chorar, se nunca o fiz, ou o faço pouco, garanto não ter sido por covardia ou machismo, mas por uma imensa tristeza que não abria espaço nem mesmo para o choro. Comento mais uma vez que não me encontro, ou me enxergo, como um ser perfeito, isso apenas é uma maneira de dizer que a mim me parece horrível não sentir igual, não fazer igual aos outros, não entendo como podem exigir tanto, solicitar tanto que os outros sejam verdadeiros, que não mintam, quando a verdade os põe rubros, esse rubor transforma-se em mácula quando a verdade vai contra o próprio desejo, quando ela os faz perceber que o desejado era o improvável. Durante esta meia-vida-inteira sempre deixei bem claro aos meus que não menti um só momento, amei quando disse que amava, tive medo quando disse ter medo, me entristeci quando tive ódio, mas sempre fui verdadeiro, pena que algumas vezes não me deram ouvidos por terem medo da verdade; antes de tudo, uma verdade que era minha e que não os obrigava a aceitá-la, mas lhes vedava os olhos devido a vergonha que tinham do desconhecido. Se desejardes, meus queridos, poderemos falar sobre esse desconhecido, um desconhecido tão conhecido, digamos conhecido politicamente, pois a nossa educação politizada nos ensinou sempre a falar a verdade e que essa verdade devia guiar-nos por toda a vida, mas a mesma vida, a vida bandida, a vida ordinária, se encarregou de nos ensinar que a omissão ou a mentira são as únicas vias possíveis de sobrevivência nela mesma, porém eu vos garanto que não, digo-vos que fomos enganados, que essa vida madrasta o fez por conveniência dela mesma. A verdade, mesmo quando usada para enganar é sempre a melhor maneira de sobrevivência. É dela que nos valemos, ou ao mais, devemos fazê-la. Da mesma maneira que Leoni o fez quando escreveu a música “como eu quero”, ou como Cazuza quando escreveu “exagerado”, a verdade pode nos macular por toda a vida, mas devemos usá-la sempre, devemos informar, principalmente em nossas relações pessoais, quando queremos apenas sexo, ou quando desejamos o outro por toda a vida, mesmo que percebamos que a resposta não será positiva. Essa forma de viver verdadeiramente, ou de sabê-la verdadeiramente, é o que pode nos fazer melhores, menos coisificados, menos seres de um mundo que prece querer-nos assim. Não lhes digo que seja fácil, ou que devamos fazê-lo o tempo todo, momentos haverá que deveremos omitir, calar-nos, para que possamos sobreviver, manter-nos vivos para uma segunda investida. Isso se adapta a todo modo de vida, a todo aspecto. Esse relato não tem a pretensão de um novo tratado sociológico, mesmo que assim o pareça; diferente deste, aqui tenho uma opinião postada, tenho uma verificação unicamente minha, e que percebo ser usual, que enxergo como possível a todos que não entendem como o mundo tem deles se utilizado sem em troca nada receber. A observação do ser coisificado e inobservância de sua natureza toda íntima é o que nos deixa imóvel ante a ação contínua da população de massa. A criação, ou a popularização deste conceito de massa não nos obriga a ele pertencer ou nos manter escravos dele; para que isso não seja possível devemos nos manter atentos à nossa natureza toda íntima, devemos atentar para nossos sentimentos, desejos e ações, sem nos preocuparmos com o que nos enfiam goela abaixo, desafiando nossa própria vontade, nossa indelével capacidade de decisão. É para isso que devemos ser verdadeiros, devemos observar sempre essa nossa natureza toda íntima, que nos faz tão diferentes, e por isso tão razoáveis; tão princípios de uma alegria geral, de um prazer externo, tão naturais como essa nossa natureza toda íntima. Espero não me mostrar prepotente neste relato, não sou uma experiência que deu certo, não sou o remediado nem mesmo a cura para a natureza das coisas coisificadas, não quero parecer assim. Não se enganem, pois eu já amei e não fui amado, já chorei vendo fotos dos que se foram, já olhei por muito tempo com os olhos fixados em uma pessoa errada quando quem me queria estava bem do meu lado. Já posei de dono da situação quando apenas era usado, já paguei pra ver quando o jogo estava completamente perdido, já me dei por vencido quando ainda dava pra lutar, já resisti quando o jogo estava perdido e muitas vezes continuei lutando quando não sabia pelo que lutava; enfim, demorei muito para enxergar minha natureza toda íntima e dela usufruir, cheguei até aqui depois de muita dor, mas tudo isso valeu à pena, tudo isso me fez o que hoje sou, tudo isso me deu propriedade para relatar o que sei, o que vi, e como sobrevivi. Por isso não se enganem pensando que sou melhor que qualquer um de vós, não me dêem tanta prepotência, pois não a tenho nem por mérito nem por direito, nem mesmo a quero como prêmio. Sou apenas alguém que parou para se observar antes que o fizessem, e isso o fiz na hora certa. Fui seduzido por esta meia-vida-inteira, fui envolvido por ela quando não devia, fui sobrepujado por ela quando não resisti, me entreguei a ela quando me agradou, me perdi em seus lábios quando fechei meus olhos, e por isso não me percebo menos culpado. Observo-me agora como alguém se percebeu antes que o fim chegasse e que se mantêm odioso dos que não o querem fazê-lo, dos que se percebem coisificados, mas não se acreditam massa-de-manobra. Pensam-se superiores ao status quo desse nosso cotidiano, desse nosso mundo de seres coisificados. Enquanto isso ocorrer, enquanto formos seres públicos, publicados, fatos de uma publicidade irresponsável, nos manteremos coisificados. Faremos parte de uma teatrologia armada, continuaremos indo ao circo para torcer que o leão coma o domador, para cruzar os dedos esperando que trapezista se arrebente no meio do picadeiro, continuaremos a acreditar que não é nossa culpa esse jogo político do qual participamos como coadjuvantes, e diremos a todos que não armamos esse circo nem mesmo sabemos de onde ele veio. Os que filhos têm continuarão a se perguntar que mundo deixarão para os seus. Alguns escolherão não ter filhos apenas por covardia não perceber que a cura para isso tudo está em si mesmo, ou deixarão que os seus filhos encontrem essa resposta, essa maldita e ingrata resposta.
[1] Meu devaneio durante a metade da minha graduação, nesse processo dos meus estudos sobre comunicação estou mais preocupado com o que tenho feito da vida alheia que com minha própria vida, pois sei que tudo é construído em coletividade, na individualidade só construímos a solidão e felizmente esta eu desconheço.

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